Saturday, March 3, 2012

A arte de narrar o reconhecimento da memória



“Entre nós dois...” anuncia com perícia primordial, a característica do romance memorialista e, neste está à marca da retórica que chamamos de Temporal. O tempo nada mais é que a forma de nossa intuição interna. É dele que é subtraída a condição particular de nossa sensibilidade e que percorre o caminho do passado, consagrando a maneira de estar – no – mundo para que as experiências sejam significativas. O primeiro fenômeno que detém o leitor na estabilidade das perspectivas é o toque do telefone a chamar por alguém que possa atender ao último chamado da personagem Vania. O ambiente prepara o leitor para o pior, para desencontros e agonias, pois a chuva deságua neste momento que serve de empecilho para o evento que chega ao momento trágico da vida: a morte. Graças à manipulação temporal. As identificações dos sujeitos concorrem juntos à apresentação dos objetos e a orientação, não apenas o olhar, mas também do corpo por inteiro engajado na exploração passivo-ativa do mundo. Vania experimentou numa típica relação intersensorial na vida, nas culturas da Índia e do Amazonas. Há, ainda, a desconfiança que pesa sobre a armadilha que é a memória. Esquecer e lembrar são verbos que trazem do submundo guardado o tempo da vida, os gostos, as cores, os sabores, a evocação da relação do possível, cujo efeito é prometer ao presente narrado, a vontade que mobiliza a promessa da promessa sob os traços da constância, enquanto ela permanece indiscernível da autêntica manutenção do si mesmo. A história representa a angústia de ser e de não ser, ou melhor, o texto explora a questão da identidade de que padecem os sujeitos modernos. A crise de identidade padecida por Vania é denominada na visão antropológica de Stuart Hall, como um processo mais amplo de mudanças, que está deslocando as estruturas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos, uma ancoragem estável no mundo social. Vania é sujeito nascido em uma sociedade e criada em outra totalmente diversa. Hoje, estes estudos de sujeitos errantes, deslocado e desenraizados de seu chão, mostram-no fragmentados por terem de aceitar a cultura da sociedade que o recebe, guardando no escaninho da memória os vestígios da cultura do nascimento.
O texto é como se o leitor estivesse assistindo a um filme com desdobramentos de manipulação narrativa fora da ordem cronológica original, em que, primeiro surge o aspecto do fim da vida, para depois nos transportar a um passeio pela Índia quando apresentam lugares, viagens, encontros, desencontros de costumes diferentes.
Vania andou pelo rio Ganga e veio para o Amazonas ainda criança, encantou-se com o outro rio, o Negro. Os relatos extraídos da memória do tempo distante, que foi a existência de Vania, para o mundo que a narradora se propõe conhecer, atravessam o tom confessional muito usado nos romances antigos e neste de comunicação moderna. A viagem é tema sempre constante, é por ela que o personagem entra nos mundos diferentes e congrega com sua outra espécie. E a memória, é artifício que dá ao texto o engajamento do reconhecimento no sentido mais forte da palavra, onde fica reforçada pela linguagem, pois somos sujeitos de discurso.
A cultura da Índia oferece inspiração e razões para construir a grandeza da cidade como é também ofertado no Amazonas. Aqui, a honra depende do crédito conferido pelos olhos de outrem, quase sempre.
A questão que se coloca no final deste percurso é saber se o bem comum vale como uma pressuposição ou como um resultado dos comportamentos de compromisso. O paradoxo disso talvez seja o estatuto da pressuposição, que parece se impor ao título “Entre nós dois...” seja de fim dos comportamentos de compromisso, só verificado – justificado – pela aptidão do bem comum de relativizar o pertencimento a uma um lugar em particular: a Índia ou Amazonas? Quem está entre nós dois? Vania? Entre o rio Ganga e o rio Amazonas?

 Francisca de Lourdes Louro 
 Pós-doutora em literatura pela UFAM/AM e professora da UEA